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Aplicação do DIH na guerra da Ucrânia

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mar 26, 2022

Especialista em Direito Internacional Humanitário, Carlos Cinelli esclarece com exclusividade ao “Hoje no Mundo Militar” sobre a aplicação do DIH na Guerra da Ucrânia – Parte I

 Barbara Martinelli  0 comentáriosDIHRússiaUcrânia

Dono não só de extenso currículo, que incluem mestrado e doutorado voltados para a área de estudos de Direito Internacional Humanitário e ainda organização curricular da disciplina DIH na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, a vasta experiência do Coronel Carlos Cinelli, como participação em missões de paz e carreira como oficial combatente, tornam ele um dos mais preparados do país a lidar com complexas questões da aplicação do Direito Internacional em conflitos armados.

Cinelli falou com exclusividade ao “Hoje no Mundo Militar” sobre questões que envolvem a aplicação do DIH no atual conflito entre Ucrânia e Rússia. Nessa primeira parte o Coronel conta um pouco da sua história e nos esclarece sobre como funcionam as regras de uso de armas explosivas, a questão que envolveu recrutamento de civis voluntários para lutar em favor da Ucrânia e pôr fim a invasão por civis voluntários aos corredores humanitários que possuíam armamento bélico, como o DIH seria aplicado. Leia a seguir a primeira parte da nossa entrevista:

1. Antes de iniciarmos nossa rodada de perguntas, deixamos o espaço aberto para que se apresente aos nossos leitores, um breve relato da sua carreira, experiência e trajetória, tanto acadêmica quanto profissional.

Minha primeira experiência com o Direito Internacional Humanitário (DIH), também conhecido como Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA), se deu quando eu era ainda um jovem tenente de Infantaria, recém-formado pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Durante a missão de paz do Brasil em Angola, em 1996, integrei um dos quatro contingentes brasileiros que foram desdobrados na África por seis meses. O contato com um cenário pós-guerra, de um conflito que havia durado 20 anos, a interação com oficiais que haviam participado da guerra e com outros militares do mundo todo — como ocorre nas missões de paz —, tudo isso aguçou a minha curiosidade acerca dos limites éticos e operacionais impostos aos comandantes no campo de batalha. No retorno ao Brasil, já graduando em direito, fui voluntário para uma bolsa de estudos oferecida pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, para o primeiro curso de pós-graduação em DIH no país, num convênio entre a Universidade de Brasília e a Ruhr-Universität Bochum, da Alemanha. A partir daí, concentrei meu mestrado e doutorado nessa área de estudos e recebi a tarefa de organizar o currículo da disciplina DIH na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Essa progressão acadêmica deu-se paralelamente à carreira de oficial combatente, ambas as vertentes se reforçando mutuamente. Tive também a oportunidade de cursar emprego tático de Infantaria na Escola de Infantaria do Exército dos Estados Unidos, onde foi muito interessante conhecer o olhar dos militares norte-americanos sobre o DIH, já que os EUA não ratificaram alguns dos tratados internacionais mais substanciais nessa área. Mais tarde, o Exército também me deu a oportunidade de lecionar língua portuguesa e cultura brasileira para os cadetes da Academia Militar de West Point, nos Estados Unidos, onde pude ser aluno-ouvinte de um dos grandes acadêmicos de DIH, o General David Wallace, então Diretor do Departamento de Direito daquela Academia. Esse somatório de experiências acadêmicas e profissionais foi coroado com o honroso convite para ser um dos revisores dos Comentários do Comitê Internacional da Cruz Vermelha à Terceira Convenção de Genebra de 1949, que versa sobre prisioneiros de guerra. Meu casamento com o DIH começou cedo e dura até hoje.

2. Vivemos um conflito que desperta o interesse mundial, os impactos econômicos e no setor dos alimentos, preenchem o imaginário da população em praticamente todos os países. Por causa das situações do dia a dia acabamos esquecendo da maior vítima do conflito, a população civil, que se encontra no meio da zona de perigo. Hoje, muitos embates são realizados na zona urbana, em cidades com milhões de habitantes. O Direito Internacional Humanitário prevê regras para o uso ou não uso, no caso de um acirramento do conflito nesse tipo de área, de armas explosivas pesadas? Os Estados têm poder de decisão sobre a utilização?

As normas do Direito Internacional Humanitário dividem-se em duas grandes vertentes. De um lado, o chamado Direito de Genebra, destinado a regular a proteção de certas categorias de pessoas e de bens. De outro, o chamado Direito da Haia, que busca definir os meios e métodos de combate permitidos, banindo aqueles que colidam com determinados princípios fundamentais. Por exemplo, no caso do princípio da proibição de causar sofrimento desnecessário e danos supérfluos, que visa essencialmente às ações entre os combatentes, um fator relevante para se estabelecer se uma arma causaria ferimentos supérfluos ou sofrimentos desnecessários é a inevitabilidade de uma grave deficiência permanente: o uso de veneno, o ato de alvejar os olhos dos soldados com feixes de laser (para causar deliberadamente cegueira permanente), o uso de munições expansivas (ponta oca) ou que não possam ser detectadas no corpo humano por meio de raio-x, todos esses métodos estão entre as proibições. Em outras palavras, mesmo entre os combatentes, os quais não têm proteção contra os efeitos da guerra, o direito das partes em conflito à escolha dos métodos e meios de combate não é ilimitado. Mas é em relação aos civis, que são as pessoas a serem protegidas em todas as situações, que a preocupação do DIH se concentra. Nesse sentido, em qualquer ataque deve ser sempre observada a proporcionalidade, o princípio fundamental segundo o qual os danos colaterais e as baixas acidentais decorrentes da ação não podem ser excessivos em relação à vantagem militar obtida. Ao mesmo tempo, outro princípio exige que seja feita a distinção adequada entre os civis e os combatentes, sendo que os atos hostis somente podem ser desencadeados contra esses últimos. Ocorre que, desde meados do século XX, cada vez mais as guerras se tornaram empreendimentos industriais e, como tais, urbanizaram-se. Muitos dos objetivos militares passaram a ser então os complexos industriais-militares, em cujas cercanias residem, trabalham e convivem civis, os quais, pela natural vulnerabilidade, acabam sendo as maiores vítimas. Embora, numa guerra, o emprego de armas pesadas seja lícito dentro das cidades, realizar um ataque indiscriminado, sem selecionar pontualmente um objetivo que possa trazer uma vantagem militar concreta e direta, e sem distinguir apropriadamente os combatentes dos civis, protegendo esses últimos, é expressamente ilegal. Pode mesmo vir a ser considerado, a depender do caso, um crime de guerra.

3. O Direito Internacional Humanitário distingue duas classes de pessoas envolvidas em um conflito armado, combatentes e civis, amparados pela legislação. Foi amplamente veiculada a fala do presidente da Ucrânia, convidando os civis Ucranianos a tomarem partido no conflito, auxiliando na produção de coquetel Molotov. Também, foi divulgado a convocação de civis “voluntários” de outros países, com experiência militar, para ingressarem no país a fim de auxiliar em sua defesa no conflito, sem serem oficialmente efetivados no exército ucraniano, o que poderia classificá-los na categoria de mercenários. À luz da legislação, quais as implicações, riscos e proteção, para esses dois grupos ao se envolverem no conflito?

Para que o leque de proteção das pessoas contra os efeitos da guerra possa ser o mais amplo possível, a opção feita pela comunidade internacional, expressa nos tratados que regulam a guerra, foi a de não formular uma definição expressa de civil. Ao definir um civil negativamente, ou seja, pelo que ele não é, automaticamente impõe-se o benefício da dúvida, compelindo o atacante a ter certeza do status daquela pessoa antes de desencadear uma ação hostil contra ela. Portanto, numa guerra, um civil é toda pessoa que não é um(a) combatente — o qual possui, esse sim, uma definição jurídica — e também não é um participante de um levante em massa, que é a única situação admitida em que civis podem legalmente pegar em armas sem que alguém os comande. Você poderia perguntar: por que é tão importante poder ser enquadrado pela definição de combatente? Porque, reciprocamente, aquele que é combatente, caso seja capturado pelo inimigo, torna-se um prisioneiro de guerra, sendo a ele concedido o que chamamos de privilégio de imunidade: ele não será processado pelos seus atos em combate, mesmo se tiver matado alguém, desde que todos esses atos tenham sido praticados seguindo os parâmetros impostos pelo DIH. E quem são os combatentes? São todos os membros das forças armadas, exceto o pessoal de saúde e os religiosos dessas forças. Mas perceba que o termo forças armadas tem uma conotação mais ampla para o DIH: delas podem fazer parte tanto os militares regulares dos exércitos nacionais quanto voluntários que se apresentem para lutar, desde que esses últimos se vinculem às forças armadas, ou seja, subordinem-se a elas concretamente, sigam as ordens dos seus comandantes superiores e enquadrem-se no seu sistema disciplinar. Tomando a guerra na Ucrânia como exemplo, todos os civis que se alistarem formalmente no Exército ucraniano passam a ser combatentes. Segundo as informações disponíveis, a chamada Legião Internacional de Defesa Territorial da Ucrânia também foi estabelecida com um vínculo formal com o Estado ucraniano, mediante decreto presidencial, o que, em tese, também lhes concede o status de combatentes. Isso porque, tanto em um caso quanto em outro, a presunção é a de que essas pessoas combaterão sob um comando responsável, terão algum tipo de sinal distintivo (por exemplo, um uniforme) e respeitarão as leis e costumes da guerra, justamente porque estão submetidas a um regime disciplinar. Então, com relação à sua pergunta, se um civil ucraniano, por conta própria, de modo autônomo, prepara e usa coquetéis Molotov, ou empunha armas contra as tropas russas, juridicamente ele é um civil participando diretamente das hostilidades, o que, pela própria contradição intrínseca a essa definição, não lhe garante o status de combatente. Em sendo capturado, ele poderá responder criminalmente por algum delito previsto nas leis em vigor (espionagem, tentativa de homicídio, alta traição etc). No caso das “legiões” majoritariamente formadas por estrangeiros, que estão indo lutar de modo independente, e que não possuem vínculo com as forças armadas ucranianas, o risco é o do enquadramento em outra situação jurídica que também pode implicar responsabilização penal, sobretudo se a motivação é meramente financeira: o mercenarismo. No meu livro, dedico um trecho a analisar as implicações, para o DIH, das chamadas companhias militares privadas, um tema bastante controverso, muitas vezes debatido sob a lógica do emprego de mercenários.

4. Outra questão importante levantada na questão envolvendo Rússia e Ucrânia foi a preocupação no que tange à exigência para a abertura de corredores humanitários para o trânsito de refugiados e suprimentos de Assistência Humanitária. Em caso de invasão do corredor por civis voluntários (como no caso da convocação feita pelo presidente Zelensky), que se dirijam para o combate e/ou ainda portem material bélico, o que poderia ocorrer? E se a Rússia atacar um comboio suspeito de levar os combatentes, ela poderia ser isenta de punições?

Os comandantes militares enfrentam um grande dilema no campo de batalha: o DIH não os obriga a evacuar os civis antes dos ataques; porém, deliberadamente deixá-los expostos aos efeitos dos combates é proibido. Então, como enfrentar esse problema? O melhor modo de demonstrar objetivamente a preocupação em proteger os civis antes de um ataque — e isso é previsto nos tratados — é emitir alertas antecipados, de modo oportuno e efetivo, por meio do uso de panfletos aéreos, equipamentos de som ou mesmo através dos veículos de comunicação disponíveis. Feito isso, a conduta seguinte é facilitar a evacuação daqueles que assim o desejarem, o que modernamente é feito por meio dos corredores humanitários, mediante acordos entre as partes. Nesses corredores, apenas podem trafegar os não combatentes, os agentes humanitários e os suprimentos de cunho assistencial. Essas rotas jamais podem ser usadas para fins militares, mesmo para a logística. A contrapartida, também negociada entre as partes, é que não haja ataques direcionados a quem trafegue pelos corredores. O uso pérfido de um corredor humanitário — por exemplo, valer-se de ambulâncias para transportar combatentes não feridos, munições ou armas — torna-o passível de ser atacado, já que há uma quebra desse acordo de não agressão. Ressalte-se que a evacuação forçada tem amparo legal, mas desde que por imperiosas necessidades militares ou para a própria segurança da população civil.

Carlos Frederico Cinelli é Coronel do Exército, Doutor em Política e Estratégia, Especialista em Direito Internacional Humanitário e Autor: “Direito Internacional Humanitário: ética e legitimidade no uso da força em conflitos armados” (Ed. Juruá)

Contatos: cinellieb91@gmail.com Livro: https://www.jurua.com.br/shop_item.asp?id=25263

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